NARRATIVAS LOCAIS: MEMÓRIA DE MUCUGÊ
Em 1995 a pesquisadora Rebeca Serra começou um trabalho de coleta de depoimentos com os moradores mais antigos do Município de Mucugê. Alguns deles já tinham mais de 90 anos de idade quando foram entrevistados, remontando suas memórias datadas do início do século XX, e também histórias do século XIX de seus avós e bisavós. Em 2010 o projeto de documentação da história oral virou o livro “Mucugê por Mucugê”.
O professor, ator, diretor, doutor em Teatro, Sérgio Farias, que mora em Mucugê há 6 anos, fez duas adaptações do livro para o teatro, criando os roteiros de “Música de Pedra: garimpo de lembranças em Mucugê”, e de “Bons Tempos Aqueles: um sarau performático”, os dois apresentados em leituras dramáticas durante esta edição 2022 da FLIGÊ (Feira Literária de Mucugê). Em cena, estiveram os alunos da Oficina de Teatro ministrada por Sérgio Farias, durante os 15 dias que precederam a Feira, e também o próprio professor.
Uma adaptação consiste em uma transformação de uma obra de uma linguagem para outra. No caso foi feita uma adaptação dramatúrgica de um livro de entrevistas, reorganizando a narrativa, fazendo cortes, acrescentando trechos, selecionando personagens, reinterpretando o conteúdo, criando um roteiro baseado em diálogos, para que o texto pudesse ser encenado no teatro. Daí foram criadas marcações, posturas, dicção, interpretação.
A leitura aprofundada e análise crítica do livro é o primeiro passo de uma adaptação. É preciso identificar e entender os personagens e seus conflitos (no caso pessoas e temas da vida real do município) para saber como trabalhar com aquilo que se quer destacar no discurso do narrador, transformando suas falas em ação no palco.
O livro “Mucugê por Mucugê” foi publicado em 2022 com o selo Fligê para distribuição gratuita à comunidade, com direitos autorais gentilmente cedidos por Rebeca Serra, que infelizmente faleceu no final de janeiro de 2023.
Seguem abaixo fragmentos do livro de Rebeca:
– E as festas de candomblé, os batuques?
– Ah, aqui não tinha não! Essas festas era pra lá pra Andaraí, Piranha… aqui, não; nem podia nem falar porque seu Douca não aceitava. Não sei porque; isso eu não alcancei! Mas, Jarê e essas coisa… agora é que tá esses batuque de Jarê por aqui mas, agora! Mas, no tempo de seu Douca, nem precisava vir. Eles era tão intolerante, tão malvado pro lado desses povo que eles nem vinha aqui.
(…)
Mas, candomblé, não tem aqui não, não tinha não. Agora é que tão batendo esses tambor aí! Mas, eu mesmo nunca fui nem pra olhar! Sim! Aqui tem Baia. Essa daí é direto, é candomblezeira! Baia e Alta Rosa são candomblezeira. Aqui só essas e umas de fora que vem, mas vai embora logo. Aqui, só essas mulher que são camdomblezeira.
– Ô Baia, sobre esse… você conhece bem e é muito interessante pra todo mundo, as atividades de Jarê, de candomblé…
– Ah! Aqui nunca teve, nunca foi frequentado, não tinha muito não. Aqui, toda vida foi assim. Aqui nessa casa morava Lídia, ela fazia Jarê. Ela dava comida de São Cosme e batia também. E depois… quem foi mais, gente? Tem umas pessoas que, assim… lá, de vez em quando, faz isso; mas, bater mesmo, nunca teve aqui não!
– Hoje ninguém mais faz?
– Não. Eu fazia na época, batia… mas, o seguinte é que depois que eu adoeci, eles já falam mas, nunca mais eu fez.
– Era bem animado, era de São Cosme. Eu bati pra São Cosme, pra Santa Bárbara, São Jerônimo, tudo eu bati. Mas agora, eu adoeci, também fiquei sem graça.
– Mas você pode fazer qualquer festa, assim, que você queira, não é? (1)- Faço. Graças a Deus, nunca teve impedimento não.
– Não, eu digo isso porque tem sempre o pai de santo que governa a casa, né?
– Mas, eu não tenho não; o meu morreu. Ó ele aqui nesse quadro, ói! Tem o retrato dele aí, tá vendo? Mas, ele morreu, acho que em função de mim mesmo. Quando ele morreu, eu tava em tratamento; em tratamento com ele. Não terminei meu serviço. Antenor. Ele morava no Andaraí, numa Fazenda. Ele morava lá. De forma que eu não terminei o serviço.
– Assim como Zé da Bastiana, morreu tão cedo, né? Mas, já Zé da Bastiana, foi mais velho do que ele, né! Era um pai de santo mais velho.
– O que é bater São Cosme?
– É dar comida ao santo, dar comida às criança! Faz também as dança e o batuque e… as coisa.
(…)
– A polícia aqui proibia?
– Proibiu, mas agora mais não. Só não quer fique bagunça até muito tarde. As pessoas reclamaram também mas, foi de um pessoal que tava aí morando na loca. Acho até que já foram. Mas, não era proibido não. Que eu aqui em casa, se eu quisesse bater três dias com três noites, batia.
– Essa mulher que eles proibiram. Essa que tá mais esse homem… esse tal do marido dela é muito chato, ouve som demais até certa hora e perturba a gente na rua. É por isso que eles não gostam também; mas, aqui em casa, pode sempre.
– Eu deixei até de dar comida de santo dos meninos no dia vinte e sete! Dei pra dar no dia vinte e oito, que no dia vinte e sete é tanta reza! E aí, tanta comida… Por isso que eu deixei o meu pro dia vinte e oito. A gente primeiro dá comida aos menino. Dá comida aos menino no quarto, separado.
(…)
– Depois que eu dou as comida pras criança e a comida que eu faço pra eles, dou pra todo mundo, todo mundo come.
– Será que seu Bia ainda faz também Uma dancinha pro santo?
– Se faz, não sei. Ele entrou na lei de crente, depois tornou sair e depois, eu acho que tornou voltar, não sei não!
– E Alta Rosa, é São Cosme ou Santa Bárbara?
– É São Cosme que ela reza e ela reza Santa Bárbara também! Cê sabe que é uma coisa que eu não sei nem explicar assim?
– Ela faz um Jarê animado também mas, parou né?
– Parou. Isso é que é chato, né?
– Tem que parar porque… se ele me dá fortaleza nas minhas pernas, eu volto. Mas, eu tando doente assim, não posso!
– Mas, pai de santo aqui mesmo, nunca teve?
– Não. Teve seu Lopes, soldado. Batia ali numa casa. Seu Lopes fez um Jarê ali, muito arrumado.
– Que tempo foi esse?
– Em quarenta e oito, seu Lopes veio aqui, fez um Jarê, fez uma porção de Jarê.
– Aqui nunca teve batismo não?
– Não. Batismo de Jarê, não. Eu mesmo, batizei o santo lá no centro do meu pai de santo, eu batizei lá!
– Como é o batismo dos santos?
– Ah, mas é tão bonito! É tão lindo, menina! É só cê vendo! Era tanto batizado de santo nas casa dos pai de santo! É lindo! Foi muito bonito o meu! Só no meu batizado, teve dezesseis galinhas! Mas, menina! Foi muito bom! Mas, foi muito bom mesmo!
Mas, isso acabou tudo, né! Coisa bonita…
– Por que o nome Jarê?
– É porque… é por causa dos nagô, né! Era dos nagô que vieram praqui. Esse nome deve ser africano, né? Daqueles nagô da África, né? Devia ser um tipo de dança deles, porque tem pouco esse nome, né?
– Depois, o candomblé não é tradição de Mucugê, é de Andaraí, mas aqui não! Tem poucos que faz.
SERRA, Rebeca. Mucugê por Mucugê. Salvador: ALBA, 2022. p. 261 a 267