ALIENÍGENAS NA CULTURA: A POLÊMICA DA CARTA DE REPÚDIO À POLÍTICA CULTURAL DA BAHIA

O problema histórico de usar expressões como “alienígena” ou “forasteiro” na cultura baiana; o equívoco de responsabilizar um secretário por questões estruturais e sistêmicas; e a análise crítica do conteúdo da carta de repúdio à política cultural do estado.

    Na foto cena do espetáculo “Coisas”, dirigido por Yanka Rudzka e coreografado por Klauss Vianna, no Teatro da UFBA em 1968

    Nos anos 1950 e 1960, a Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob a reitoria de Edgard Santos, fez um movimento pioneiro de contratar artistas, professores e pesquisadores estrangeiros e de outras regiões do Brasil. Isso aconteceu porque a Bahia não tinha ainda uma tradição consolidada em certas áreas artísticas modernas (música contemporânea, artes visuais experimentais, dança de vanguarda).

    Professores como Yanka Rudzka (dança), Koellreutter (música), Lina Bo Bardi (arquitetura e museologia), Pierre Verger (fotografia e etnografia) e Martim Gonçalves (teatro) foram convidados para estruturar cursos, escolas e grupos experimentais dentro da UFBA: um projeto ousado de modernização cultural, que queria estabelecer a Bahia como centro de vanguarda no Brasil e dialogar com o cenário internacional.

    Algumas vozes daquela época (que reverberaram nos anos 1990 e reverberam até hoje) ironizavam esses diálogos entre cultura erudita europeia e popular afro-baiana, mediados por “forasteiros”. Como se a presença do “alheio” maculasse a “autenticidade”, a “genialidade inata” do local. E mesmo quando se celebrava a vanguarda, era marcada uma separação entre nativo e forasteiro.

    O conflito narrativo entre “desprovincializar” e “romanizar” produzia um discurso ambíguo e contraditório que permanece em parte da crítica baiana, que ora desvaloriza o local, ora rejeita o externo, sem conseguir reconhecer a potência do encontro. O paradoxo do colonizado, que, em tempos de mudança de paradigmas e migrações, ganha proporções atlânticas.

    Quando o atual Secretário de Cultura do Estado da Bahia foi nomeado, achei um exagero os muitos adjetivos maledicentes cunhados sobre ele. Inclusive alienígena e forasteiro.

    Não encontrei o trecho sobre alienígena na carta de repúdio às políticas públicas para a cultura do Estado da Bahia, publicada no jornal Correio. Talvez tenha sido uma provocação para acender o debate (estratégia que funcionou com sucesso!).

    Por um lado, é ruim reforçar essa narrativa meio xenofóbica de forasteiro versus nativo. Mas, por outro, o fogo das polêmicas ajuda a transmutar.

    Então, vou aproveitar o movimento para analisar o que diz a carta:

    1. “Política cultural insuficiente, descontínua e sem orçamento próprio”

    O fato é que a Secretaria de Cultura (SecultBA) não define seu próprio orçamento… Ele é aprovado pelo Governo do Estado e pela Assembleia Legislativa.

    2. “Substituição das políticas de Estado por leis emergenciais”

    Até onde pude apurar, a Lei Paulo Gustavo (LPG) destinou aproximadamente R$ 285 milhões para a Bahia (R$ 148 milhões para os editais do Estado e R$ 131 milhões para os editais dos municípios). A Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) vai repassar cerca de R$ 550 milhões até 2027, com R$ 71 milhões já direcionados a editais. Pelo Fazcultura foram R$ 15 milhões em 2024 e o mesmo valor para 2025. E o Fundo de Cultura, mais cerca de R$ 55 milhões em editais (ações continuadas e eventos calendarizados).

    3. “Subordinação da produção artística a interesses partidários”

    Isso é histórico. O sistema político envolve cotas partidárias e afins, que deixam a cultura na mão de determinado agente político do Executivo e seus parceiros.

    4. “Queda no investimento nos últimos 10 anos (OBEC)”

    Novamente: a SecultBA não determina seu próprio orçamento. Quem define é o Executivo estadual e a Assembleia Legislativa do Estado. São esses que temos que pressionar. Como?

    5. “Desmonte progressivo da política cultural”

    Isso é fato. Desde a saída do professor Albino, a pasta perdeu força e autonomia. Que pontos objetivos precisam ser corrigidos e que sugestões temos para corrigir?

    6. “Falta de diálogo e critérios claros nos editais”

    Onde exatamente falta transparência e critérios objetivos nos editais? E o que propomos como solução?

    Em resumo, a carta denuncia as falhas sistêmicas da política cultural baiana. O orçamento ampliado da Cultura, autonomia, transparência, diálogo e continuidade é luta de décadas. E houve gestões anteriores a esta com muito menos organização e realizações.

    O que importa mesmo é que, para avançar, precisamos:

    • Pressionar o governo estadual e a Assembleia Legislativa por um orçamento cultural estruturado (2%).
    • Exigir critérios mínimos para nomeação dos gestores da Cultura (e, na minha opinião, um deles não pode ser “ter nascido na Bahia”).
    • Manter a sociedade civil e os fazedores culturais mobilizados e participativos.

    A Cultura precisa transformar críticas em um plano de ação real, democrático e eficaz, com respeito, transparência e inteligência.

    Em tempo, a colaboração entre os “alienígenas” Lina Bo Bardi e Martim Gonçalves com intelectuais baianos como José Valladares, Walter da Silveira e Anísio Teixeira, que tanto foi ironizada no passado, resultou em uma rede de pensamento poderosa, que criou instituições como o MAM da Bahia (o revolucionário Museu-Escola) e redefiniu o papel do museu como um espaço de diálogo permanente.

    O encontro entre o local e o estrangeiro pode ser uma chave para mais desenvolvimento, e não motivo de conflito.

    Luciana Moniz
    Luciana Moniz
    Artigos: 36

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